Resumo: Cidadania
A história da cidadania confunde-se em muito
com a história das lutas pelos direitos humanos. A cidadania esteve e está em
permanente construção; é um referencial de conquista da humanidade, através
daqueles que sempre lutam por mais direitos, maior liberdade, melhores
garantias individuais e coletivas, e não se conformam frente às dominações
arrogantes, seja do próprio Estado ou de outras instituições ou pessoas que não
desistem de privilégios, de opressão e de injustiças contra uma maioria desassistida
e que não se consegue fazer ouvir, exatamente por que se lhe nega a cidadania
plena cuja conquista, ainda que tardia, não será obstada. Ser cidadão é ter
consciência de que é sujeito de direitos. Direitos à vida, à liberdade, à
propriedade, à igualdade, enfim, direitos civis, políticos e sociais. Mas este
é um dos lados da moeda. Cidadania pressupõe também deveres. O cidadão tem de
ser cônscio das suas responsabilidades enquanto parte integrante de um grande e
complexo organismo que é a coletividade, a nação, o Estado, para cujo bom
funcionamento todos têm de dar sua parcela de contribuição. Somente assim se
chega ao objetivo final, coletivo: a justiça em seu sentido mais amplo, ou
seja, o bem comum.
Sumário:
Introdução – 1; A Cidadania na Antigüidade –
2; A Cidadania na Grécia Antiga – 3;
A Cidadania Romana – 4; Cidadania na Idade
Média – 5; Cidadania na Idade Moderna – 6; Outras Considerações – 7; A
Cidadania no Brasil – 7; Conclusão – 9; Referências Bibliográficas – 10.
INTRODUÇÃO
No discurso corrente de políticos,
comunicadores, dirigentes, educadores, sociólogos e uma série de outros agentes
que, de alguma maneira, se mostram preocupados com os rumos da sociedade, está
presente a palavra cidadania. Como é comum nos casos em que há a
superexploração de um vocábulo, este acaba ganhando denotações desviadas do seu
estrito sentido. Hoje, tornou-se costume o emprego da palavra cidadania para
referir-se a direitos humanos, ou direitos do consumidor e usa-se o termo
cidadão para dirigir-se a um indivíduo qualquer, desconhecido.
De certa forma, faz sentido a mistura de
significados, já que a história da cidadania confunde-se com a história dos
direitos humanos, a história das lutas das gentes para a afirmação de valores
éticos, como a liberdade, a dignidade e a igualdade de todos os humanos
indistintamente; existe um relacionamento estreito entre cidadania e luta por
justiça, por democracia e outros direitos fundamentais asseguradores de
condições dignas de sobrevivência.
Expressão originária do latim, que tratava o
indivíduo habitante da cidade (civitas), na Roma antiga indicava a
situação política de uma pessoa (exceto mulheres, escravos, crianças e outros)
e seus direitos em relação ao Estado Romano. No dizer de Dalmo Dallari:
“A cidadania expressa um conjunto de
direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do
governo de seu povo. Quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da
vida social e da tomada de decisões, ficando numa posição de inferioridade
dentro do grupo social”[1].
No Brasil, os primeiros esforços para a
conquista e estabelecimento dos direitos humanos e da cidadania confundem-se
com os movimentos patrióticos reivindicativos de liberdade para o País, a
exemplo da inconfidência mineira, canudos e outros. Em seguida, as lutas pela
independência, abolição e, já na república, as alternâncias democráticas,
verdadeiros dilemas históricos que custaram lutas, sacrifícios, vidas humanas.
E hoje, a quantas anda a nossa cidadania? A
partir da Constituição de 1988, novos instrumentos foram colocados à disposição
daqueles que lutam por um País cidadão. Enquanto consumidor, o brasileiro
ganhou uma lei em sua defesa – o CDC; temos um novo Código de Trânsito; um novo
Código Civil. Novas ONGs que desenvolvem funções importantíssimas, como defesa
do meio ambiente. A mídia, apesar dos seus tropeços, tem tido um papel
relevante em favor da cidadania. E muitas outras conquistas a partir da Nova
Carta.
Como o exemplo da Ação Cidadania Contra a
Miséria e pela Vida, Movimento pela Ética na Política. Memorável a ação dos
“caras-pintadas”, movimento espontâneo de jovens que contribuiu para o impeachment do presidente Collor. A Ação Popular,
Ação Civil Pública, Mandado de Injunção, Mandado de Segurança entre outros,
além da instituição do Ministério Público, importante instrumento na defesa da
ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Há um longo caminha a percorrer. É só ativar
um pouco a nossa acuidade natural e veremos que estamos cercados de um sem
número de mazelas que insistem em infestar a nossa sociedade. Os representantes
que, mal acabam de se eleger, dão as costas para o eleitor e este não lhe nega
a recíproca, deixando aqueles ainda mais à vontade para as suas rapinagens.
Uma pesquisa divulgada pelo Ibope[2] em 25.11.03 traz dados preocupantes sobre as nossas
relações de cidadania. Indica que 56% dos brasileiros não têm vontade de
participar das práticas capazes de influenciar nas políticas públicas. 35% nem
tem conhecimento do sejam essas práticas e 26% acham esse assunto “chato
demais” para se envolver com ele. Nem tudo está perdido: 44% dos entrevistados
manifestaram algum interesse em participar para a melhoria das atividades
estatais, e entendem que o poder emana do povo como está previsto na
Constituição. A pesquisa anima, de forma até surpreendente, quando mostra que
54% dos jovens (entre 16 e 24 anos), têm interesse pela coisa pública.
Interesse que cai progressivamente à medida que a idade aumenta. A pesquisa
ajuda a desmontar a idéia que se tem de que o jovem é apático ou indiferente às
coisas do seu país.
1. A CIDADANIA NA ANTIGÜIDADE
Em tempos recuados da História encontram-se
sinais de lutas sociais que lembram bem a busca por cidadania. Bem tratado por
Jaime Pinsky, apudEmiliano
José[3], por volta do século
VIII a.c. os Profetas Isaías e Amós pregavam em favor do povo e contra os
opressores:
“cessai de fazer o mal,
aprendei a fazer o bem. Respeitai o direito, protegei o oprimido. Fazei justiça
ao órfão, defendei a viúva”.
“Portanto, já que explorais o pobre e
lhe exigis tributo de trigo, edificareis casas de pedra, porém não habitareis
nelas, plantareis as mais excelentes vinhas, porém não bebereis do seu vinho.
Porque eu conheço as vossas inúmeras transgressões e os vossos grandes pecados:
atacais o justo, aceitais subornos e rejeitais os pobres à sua porta”.
1.1 A CIDADANIA NA GRÉCIA ANTIGA
Na Grécia de Platão e Aristóteles, eram considerados cidadãos todos
aqueles que estivessem em condições de opinar sobre os rumos da sociedade.
Entre tais condições, estava a de que fosse um homem totalmente livre, isto é,
não tivesse a necessidade de trabalhar para sobreviver, uma vez que o
envolvimento nos negócios públicos exigia dedicação integral. Portanto, era pequeno o número
de cidadãos, que excluíam além dos homens ocupados (comerciantes, artesãos), as
mulheres, os escravos e os estrangeiros. Praticamente apenas os proprietários
de terras eram livres para ter o direito de decidir sobre o governo. A
cidadania grega era compreendida apenas por direitos políticos, identificados
com a participação nas decisões sobre a coletividade.
Citando Sabine, Quintão Soares[4] explica que, em consonância com a assertiva de que
cidadania é um mecanismo de representação política que permite relacionamento
pessoal entre governantes e governados e que esse paradigma assenta-se na
instituições greco-romanas e sua complexa transição para a Idade Média,
demonstra que os modernos conceitos de ideais políticos, como os de justiça,
liberdade, governo constitucional e respeito às leis, surgiram de conceitos de
pensadores helênicos sobre as instituições da Cidade-Estado.
Na Grécia antiga, toda a sociedade da
civilização apresentava a dicotomia cidadão e não-cidadão. Lage de Resende e
Morais, apud Wilba L. M. Bernardes[5], ensina que:
“A cidadania era para os gregos um bem
inestimável. Para eles a plena realização do homem se fazia na sua participação
integral na vida social e política da Cidade-Estado”. “...só possuía
significação se todos os cidadãos participassem integralmente da vida política
e social e isso só era possível em comunidades pequenas”.
Wilba L. M. Bernardes[6] refere-se a outros autores para esclarecer que no início
da evolução ateniense só uma classe de cidadãos exercia a plenitude da
cidadania (existia uma divisão censitária da sociedade); somente a partir das
reformas de Clístenes (509 a .c.),
essa cidadania foi estendida a todo cidadão ateniense, que poderia inclusive
exercer qualquer cargo de governo. Também é a partir de Clístenes, segundo
ensina Fustel de Coulanges,
que a antiga aristocracia ateniense sofreu o seu mais duro golpe: Clístenes
confirmou as reformas políticas de Sólon, introduziu também reformas na velha
organização religiosa da sociedade ateniense: “A partir deste momento, não
houve mais castas religiosas, nem privilégios de nascimento na religião ou na
política”.
Celso Lafer, apud Mário Quintão[7], entende que a
igualdade resulta da organização humana, que é o meio de igualizar as
diferenças por intermédio das instituições. É o caso da polis, que tornava os homens
iguais através da lei. Perder o acesso à esfera pública equivalia a privar-se
da igualdade. O indivíduo, destituído da cidadania e submetido à esfera
privada, não usufruía os direitos, que só podiam existir em função da
pluralidade dos homens. A esfera privada, vinculada às atividades de
sobrevivência do indivíduo, era o espaço de sujeição no qual a mulher, o
escravo e os filhos, destituídos de direitos, estavam sob o domínio despótico
do chefe de família e a proteção das divindades domésticas.
Lembra Wilba Bernardes que o Estado à época de
Roma e Grécia, se é que podem assim ser chamados, não tinha a feição que hoje
lhe é conferida; era mais um prolongamento da família, pois esta era a base da
sociedade. E sendo assim, o indivíduo encontrava-se completamente absorvido
pelo Estado ou pela Cidade-Estado. Aos cidadãos atenienses eram reservados os
direitos políticos. Os cidadãos formavam o corpo político da cidade, daí a
faculdade de tomarem parte das Assembléias, exercerem a magistratura e
proporcionarem a justiça.
1.2 A CIDADANIA ROMANA
Em Roma, também se encontra, patente, a idéia
de cidadania como capacidade para exercer direitos políticos e civis e a
distinção entre os que possuíam essa qualidade e os que não a possuíam. A
cidadania romana era atribuída somente aos homens livres, mas nem todos os
homens livres eram considerados cidadãos. Segundo Wilba Bernardes, em Roma
existiam três classes sociais: os patrícios (descendentes dos fundadores), os
plebeus (descendentes dos estrangeiros) e os escravos (prisioneiros de guerra e
os que não saldavam suas dívidas). Existiam também os clientes, que eram,
segundo informam Pedro e Cáceres[8], homens livres,
dependentes de um aristocrata romano que lhes fornecia terra para cultivar em
troca de uma taxa e de trabalho.
Em princípio, a diferença entre patrícios e
plebeus é que estes, apesar de homens livres, não eram considerados cidadãos,
privilégio dos patrícios, que gozavam de todos os direitos políticos, civis e
religiosos[9]. Isso deu motivo a
várias lutas internas, entre patrícios e plebeus. Após a reforma do Rei Sérvio
Túlio, os plebeus tiveram acesso ao serviço militar e lhes foram assegurados
alguns direitos políticos. Só a partir de 450 a .C., com a elaboração da famosa Lei das
Doze Tábuas, foi assegurada aos plebeus uma maior participação política, o que
se deveu em muito à expansão militar romana. O Direito Romano regulava as
diferenças entre cidadãos e não-cidadãos. O direito civil (ius civile)
regulamentava a vida do cidadão, e o direito estrangeiro (ius gentium)
era aplicado a todos os habitantes do império que não eram considerados
cidadãos.
Ensina Alves,
no dizer de Wilba Bernardes, que:
“Desde os fins da República, a
tendência de Roma é no sentido de estender, paulatinamente, a cidadania a todos
os súditos do Império. Assim, em 90
a .c., a lex Iulia a concedeu aos habitantes do Latium;
um ano depois, a lex Plautia Papiria a atribuiu aos aliados de Roma; e, em 49 a .c., a lex Roscia fez o
mesmo com relação aos habitantes da Gália Transpadana”[10].
Em 212 d.C., Caracalla, na célebre Constitutio Antoniniana,
concedeu a cidadania a quase todos os habitantes do Império. As exceções que
subsistiram desapareceram com Justiniano.
Na lição de Mário Quintão[11], vê-se que o Direito
Romano, apesar de proteger as liberdades individuais e reconhecer a autonomia
da família com o pátrio poder, não assegurava a perfeita igualdade entre os
homens, admitindo a escravidão e discriminando os despossuídos. Ao lado da
desigualdade extrema entre homens livres e escravos, o Direito Romano admitia a
desigualdade entre os próprios indivíduos livres, institucionalizando a
exclusão social.
1.3 A CIDADANIA NA IDADE MÉDIA
Com a decadência do Império Romano, e
adentrando a Idade Média, ocorrem profundas alterações nas estruturas sociais.
O período medieval é marcado pela sociedade caracteristicamente estamental, com
rígida hierarquia de classes sociais: clero, nobreza e servos (também os vilões
e os homens livres).
A Igreja cristã passou a constituir-se na
instituição básica do processo de transição para o tempo medieval. As relações
cidadão-Estado, antes reguladas pelo Império, passam a controlar-se pelos
ditames da Igreja cristã. A doutrina cristã, ao alegar a liberdade e igualdade
de todos os homens e a unidade familiar, provocou transformações radicais nas
concepções de direito e de estado.
Para Mário Quintão, o desmoronamento das
instituições políticas romanas e o fortalecimento do cristianismo ensejaram uma
reestruturação social que foi dar-se no feudalismo, cujas peculiaridades
diferiam consoante seus aspectos regionais. O feudalismo, considerado “idade
das trevas”, configura-se pela forma piramidal caracterizada por específicas
relações de dependência pessoal (vassalagem), abrangendo em sua cúpula rei e
suserano e, em sua base, essencialmente, o campesinato.
Essa relação de dependência pessoal de
obrigações mútuas originava-se de ato sacramental e solene e que apresentava
duas vertentes: o vassalo, em troca de proteção e segurança, inclusive
econômica, oferecia fidelidade, trabalho e auxílio ao suserano, que,
reciprocamente, investia o vassalo no benefício, elemento real e econômico
dessa relação feudal.
Na época medieval, em razão dessa índole
hierarquizada das estruturas em classes sociais, dilui-se o princípio da
cidadania. O relacionamento entre senhores e vassalos dificultava
bastante a definição desse
conceito. O homem medieval, ou era vassalo, ou servo, ou suserano; jamais foi cidadão.
Os princípios de cidadania e de nacionalidade dos gregos e romanos estariam
“suspensos” e seriam retomados com a formação dos Estados modernos, a partir de
meados do século XVII.
1.4 A CIDADANIA NA IDADE MODERNA
Os primeiros sinais de desmoronamento do
sistema que caracterizou o medievo foram a privatização do poder. Hannah
Arendt, citada por Quintão[12], diz que:
“A queda da autoridade política foi
precedida pela perda da tradição e pelo enfraquecimento dos credos religiosos
institucionalizados; foi o declínio da autoridade religiosa e tradicional que
talvez tenha solapado a autoridade política, e certamente provocado a sua ruína”
Com o fim do feudalismo e a ocorrência da
formação dos Estados nacionais, a sociedade, ainda formada e organizada em
clero, nobreza e povo, volta a ter uma centralização do poder nas mãos do rei,
cuja autoridade abrangia todo o território e era reconhecida como legal pelo
povo. Língua, cultura e ideais comuns auxiliaram a formação desses Estados
Nacionais.
Já no final da Idade Moderna, observa-se um
sério questionamento das distorções e privilégios que a nobreza e clero
insistiam em manter sobre o povo. É aí que começam a despontar figuras que
marcariam a História da cidadania, como Rousseau, Montesquieu, Diderot,
Voltaire e outros. Esses pensadores passam a defender um governo democrático,
com ampla participação popular e fim de privilégios de classe e ideais de
liberdade e igualdade como direitos fundamentais do homem e tripartição de
poder. Essas idéias dão o suporte definitivo para a estruturação do Estado
Moderno. Lembrando que alguns desses ideais já teriam sido objeto de discussão
quando do início do constitucionalismo inglês em 1215, quando o rei João Sem
Terra foi forçado a assinar a Magna Carta.
As modernas nações, governos e instituições
nacionais surgiram a partir de monarquias nacionais formadas pela centralização
ocorrida no desenrolar da Idade Moderna. Segundo Wilba Bernardes “desde o
momento em que o Estado moderno começa a se organizar, surge a preocupação de
definir quais são os membros deste Estado, e, dessa forma, a idéia atual de
nacionalidade e de cidadania só será realmente fixada a partir da Idade
Contemporânea”[13].
“Desde o advento do Estado liberal de
direito, a base da cidadania refere-se à capacidade para participar no
exercício do poder político mediante o processo eleitoral. Assim, a cidadania
ativa liberal derivou da participação dos cidadãos no moderno Estado-nação,
implicando a sua condição de membro de uma comunidade política legitimada no
sufrágio universal, e, portanto, também a condição de membro de uma comunidade
civil atrelada à letra da lei”.
1.5 OUTRAS CONSIDERAÇÕES
A história da cidadania mostra bem
como esse valor encontra-se em permanente construção. A cidadania constrói-se e
conquista-se. É objetivo perseguido por aqueles que anseiam por liberdade, mais
direitos, melhores garantias individuais e coletivas frente ao poder e a
arrogância do Estado. A sociedade ocidental nos últimos séculos andou a passos
largos no sentido das conquistas de direitos de que hoje as gerações do
presente desfrutam.
O exercício da cidadania plena pressupõe ter
direitos civis, políticos e sociais e estes, se já presentes, são fruto de um
longo processo histórico que demandou lágrimas, sangue e sonhos daqueles que
ficaram pelo caminho, mas não tombados, e sim, conhecidos ou anônimos no tempo,
vivos no presente de cada cidadão do mundo, através do seu
“ir e vir”, do seu livre arbítrio e de todas as conquistas que, embora
incipientes, abrem caminhos para se chegar a uma humanidade mais decente, livre
e justa a cada dia.
2 A CIDADANIA NO BRASIL
A história da cidadania no Brasil está
diretamente ligada ao estudo histórico da evolução constitucional do País. A
Constituição imperial de 1824 e a primeira Constituição republicana de 1891
consagravam a expressão cidadania.
Mas, a partir de 1930, observa Wilba Bernardes[15], ocorre uma nítida
distinção nos conceitos de cidadania, nacionalidade e naturalidade. Desde
então, nacionalidade refere-se à qualidade de quem é membro do Estado
brasileiro, e o termo cidadania tem sido empregado para definir a
condição daqueles que, como nacionais, exercem direitos políticos.
A história da cidadania no Brasil é
praticamente inseparável da história das lutas pelos direitos fundamentais da
pessoa: lutas marcadas por massacres, violência, exclusão e outras variáveis
que caracterizam o Brasil desde os tempos da colonização. Há um longo caminho
ainda a percorrer: a questão indígena, a questão agrária, posse e uso da terra,
concentração da renda nacional, desigualdades e exclusão social, desemprego,
miséria, analfabetismo, etc.
Entretanto, sobre a cidadania propriamente
dita, dir-se-ia que esta ainda engatinha, é incipiente. Passos importantes já
foram dados. A segunda metade do século XX foi marcada por avanços
sócio-políticos importantes: o processo de transição democrática, a volta de
eleições diretas, a promulgação da Constituição de 1988 “batizada” pelo então
presidente da constituinte Ulysses Guimarães de a “Constituição Cidadã”. Mas há
muito que ser feito. E não se pode esperar que ninguém o faça senão os próprios
brasileiros. A começar pela correção da visão míope e desvirtuada que se tem em
ralação a conceitos, valores, concepções. Deixar de ser uma nação nanica de
consciência, uma sociedade artificializada nos seus gostos e preferências, onde
o que vale não vale a pena, ou a mediocridade transgride em seu conteúdo pelo
arrastão dos acéfalos. Tem-se aqui uma Constituição cidadã, mas falta uma
“Ágora” onde se possa praticar a cidadania, e tornar-se, cada brasileiro em um ombudsman de sua Pátria.
É inegável que o Brasil é um País injusto, ou
melhor, a sociedade brasileira é extremamente desigual. Basta ver os números do
IBGE para indagarmos os motivos de tantos contrastes, de tão perversos
desequilíbrios. E o que é pior: a cada pesquisa, as diferenças aumentam, a
situação de ricos e pobres que parecem migrar para extremos opostos... nessa
escala de aprofundamento das injustiças sociais, ao contrário do que desejava
Ulysses Guimarães em seu discurso na Constituinte em 27 de julho de 1988:
“essa será a Constituição cidadã,
porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros, vítimas da pior das
discriminações: a miséria”. “ Cidadão é o usuário de bens e serviços do
desenvolvimento. Isso hoje não acontece com milhões de brasileiros, segregados
nos guetos da perseguição social”.
Por que tudo isso continua? Falta vontade dos
governos? Ao que parece, todos se preocupam, reclamam e se incomodam com esta
triste realidade, mas, ações consistentes, de efeitos estruturais e capazes de
mudar os rumos das tendências sócio-econômicas da sociedade brasileira não se
podem vislumbrar, ainda. É vontade geral manifesta que haja um mínimo de justiça
social. Entretanto, por que não fazer valer esse desejo da maioria, se este é
um País democrático? Será que se atribui muita importância, ou se respeitam
demais as chamadas minorias? As elites?
As questões são mais profundas. As soluções
demandam “garimpagem” com muito tino e sabedoria, requerem grande esforço
social conjunto. Não servem aqueles apelos carregados de emoção em busca de
respostas emergentes e imediatas, que passam logo e deixam a população ainda
mais frustrada, mais descrente. Há que se pensar algo mais racional, profundo e
que tenha começo, meios e finalidades claros, objetivos e sem a essência
obrigatória do curto prazo.
Por falar em começo, que tal pensar-se em
construir uma verdadeira cidadania? Aliás, construir a cidadania dos
brasileiros. Fala-se tanto das qualidades incomuns dos pátrios. Povo alegre,
generoso, criativo, pacífico, solidário, sensível ante os problemas alheios;
povo capaz de reagir rápida e inteligentemente, ante a situações adversas.
Porém, falta a cidadania... Esta, sim, é uma qualidade da qual não prescinde um
povo que se diz democrático. Alain Touraine[16] vê a liberdade como a primeira das condições necessárias e
suficientes à sustentação democrática. A outra condição para uma democracia
sólida é a cidadania.
Para que haja democracia é necessário que
governados queiram escolher seus governantes, queiram participar da vida
democrática, comprometendo-se com os seus eleitos, apontando o que aprova e o
que não aprova das suas ações. Assim, vão sentir-se cidadãos. Isto supõe uma
consciência de pertencimento à vida política do país. Querer participar do
processo de construção dos destinos da própria Nação. Ser cidadão é sentir-se
responsável pelo bom funcionamento das instituições. É interessar-se pelo bom
andamento das atividades do Estado, exigindo, com postura de cidadão, que este
seja coerente com os seus fundamentos, razoável no cumprimento das suas finalidades
e intransigente em relação aos seus princípios constitucionais.
O exercício do voto é um ato de cidadania.
Mas, escolher um governante não basta. Este precisa de sustentação para o
exercício do poder que requer múltiplas decisões. Agradáveis ou não, desde que
necessárias, estas têm de ser levadas a cabo e com a cumplicidade dos cidadãos.
Estes não podem dar as costas para o seu governante apenas e principalmente
porque ele exerceu a difícil tarefa de tomar uma atitude impopular, mas
necessária, pois, em muitos momentos, o governante executa negócios que, embora
absolutamente indispensáveis, parecem estranhos aos interesses sociais. É
nessas ocasiões que se faz necessário o discernimento, próprio de cidadão
consciente, com capacidade crítica e comportamento de verdadeiro “também sócio”
do seu país.
Ser cidadão é ter consciência de que é sujeito
de direitos. Direitos à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade de
direitos, enfim, direitos civis, políticos e sociais. Mas este é um dos lados
da moeda. Cidadania pressupõe também deveres. O cidadão tem de ser cônscio das
suas responsabilidades enquanto parte integrante de um grande e complexo
organismo que é a coletividade, a nação, o Estado, para cujo bom funcionamento
todos têm de dar sua parcela de contribuição. Somente assim se chega ao
objetivo final, coletivo: a justiça em seu sentido mais amplo, ou seja, o bem
comum.
3. CONCLUSÃO
O termo cidadania parece ter caído nas graças
daqueles que têm na comunicação o instrumento de trabalho, como políticos,
dirigentes, comunicadores, sociólogos e outros profissionais que, de alguma
forma, interagem no meio social. Em seu ensaio a Veja, edição de 22/10/03,
Roberto Pompeu de Toledo, ao fazer uma crítica ao comportamento do brasileiro,
quando este se julga “estar por cima” e usa da impontualidade como meio de
dominação, refere-se à pontualidade como expressão de igualitarismo. E
acrescenta: “É, para usar detestável palavrão em voga, uma manifestação de
‘cidadania’. Na pontualidade, duas pessoas chegam junto.”. Considerada palavra
“gasta”, ou não, o fato é que a cidadania é parâmetro balizador da história do
homem enquanto ser social. Mesmo que, inconscientemente, o homem, na sua
caminhada ao longo da História, sempre manteve a cidadania como questão central
das suas lutas, como se verifica ao se recuar nos primórdios da humanidade.
A luta pela cidadania estava presente no
profetismo hebreu. Os contemporâneos de Aristóteles e Platão organizavam-se
para a prática da cidadania. A Roma de Cícero, através do Direito, da civitas, contribuiu
significativamente na discussão dos direitos civis e políticos do cidadão.
Essas histórias de lutas humanas em busca de reconhecimento de direitos do
homem como cidadão, passa também pelo medievo, onde deixam vestígios os mais
profundos. Em seguida, pelas revoluções burguesas, pelas lutas sociais dos
séculos XIX e XX e até nossos dias. A auto-afirmação continua sendo perseguida,
dia a dia, através de incansáveis batalhas contra todo tipo de iniqüidades,
injustiças, opressão, etc., perversões que insistem em obstruir as ações
humanas em prol de uma sociedade mais igualitária e feliz.
A história da cidadania confunde-se em muito
com a história das lutas pelos direitos humanos. A cidadania esteve e está em
permanente construção; é um referencial de conquista da humanidade, através
daqueles que sempre buscam mais direitos, maior liberdade, melhores garantias
individuais e coletivas, e não se conformam frente às dominações arrogantes,
seja do próprio Estado ou de outras instituições ou pessoas que não desistem de
privilégios, de opressão e de injustiças contra uma maioria desassistida e que
não se consegue fazer ouvir, exatamente por que se lhe nega a cidadania plena
cuja conquista, ainda que tardia, não será obstada.
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